segunda-feira, 22 de outubro de 2012


A FORMAÇÃO DO CANDOMBLÉ E A NAÇÃO JEJE

No início da década de 1990, o então jovem estudante catalão Luis Nicolau Parés fazia suas primeiras incursões ao Recôncavo baiano, quero dizer, à cidade de Cachoeira. Na época, era doutorando da School of Oriental and African Studies (SOAS), da Universidade de Londres, e fazia suasprimeiras sondagens de campo no Zôogodô Bogum Malê Seja Hundê, para compor sua tese de doutorado em Antropologia da Religião sobre o Tambor de Mina do Maranhão. Tive a satisfação de conhecê-lo, então, e, a
partir daí, mantivemos alguns contatos através de correspondências. Anos depois, em 1998, ele retornou ao Brasil, fixando-se definitivamente em Salvador. Por quase uma década, testemunhei Parés em constante contato com o povo-de-santo, presenciando cerimônias privativas em terreiros de Candomblé e debruçado em empoeirados documentos históricos em Cachoeira. Compartilhando de sua amizade, trocamos importantes informações, assim como documentos que nos interessavam mutuamente e caminhamos pelas zonas rurais de Cachoeira, reconhecendo espaços sagrados “plantados” por africanos. Resultado deste esforço foi a publicação do livro A formação do Candomblé – história e ritual da nação jeje na Bahia, que nos chega com um substancial atraso, visto que, pelo menos há uns três anos, se encontrava concluído. Todavia, neste interregno,alguns capítulos foram revisados e ampliados e outros, incluídos na versão original, que certamente ofereceram mais densidade à obra. O mencionado livro, como o autor enfatiza, dedica-se ao estudo aprofundado e pormenorizado de uma das “raízes” da cultura afro-brasileira a partir da história e da antropologia da religião. Nela, o leitor deparar-se-á com a construção étnica da “nação jeje” no Brasil Colônia (nomeadamente a partir do Setecentos, quando estes povos chegaram à Bahia com maior intensidade); com a contribuição dos cultos de voduns no processo formativo e organizacional do Candomblé e, finalmente, com a micro-história de dois terreiros de nação jeje (mahi) e uma etnografia
seletiva do panteão e do ritual vodum contemporâneo na Bahia. A relevância da obra reside exatamente nestes aspectos perseguidos pelo autor, visto que, salvo engano, até então nenhum estudo neste sentido foi realizado. Além disto, e este é outro aspecto importante, o escopo da obra se desdobra a partir da busca do sentido lingüístico de dois termos: “vodum” e “jeje”. No capítulo introdutório, Nicolau diz que um dos problemas do seu trabalho é compreender “a gênese e a manutenção das identidades étnicas dos africanos no Brasil” (p. 15). Entre outras teorias que dão suporte à obra, as da etnicidade têm maior acento. Opondo-
se às de caráter primordial, preconizadas por Max Weber e Clifford Geertz, o autor privilegia a de caráter
relacional (situacional), proposta por Fredrik Barth, segundo a qual “o nós se constrói em relação a eles”. O autor pensa em termos de que “a identidade étnica não seria, portanto, simplesmente um conglomerado de sinais diacríticos fixos (de origem, parentesco biológico, língua, religião, etc.), mas um processo histórico, dinâmico, em que estes sinais seriam selecionados e (re)elaborados em relação de contraste com o ‘outro’” (p. 15). Atrelando a teoria relacional ao seu argumento, refere-se a Manuela Carneiro da Cunha, que afirma que “a cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função, essencial e que se acresce às outras, enquanto se torna uma cultura de contraste” (p. 15). Os dois primeiros capítulos do trabalho são dedicados ao estudo exaustivo das nações ou etnias (etnias não no sentido de “raça”, mas de povos ou sociedades), dos portos e dos meandros do tráfico escravo no contexto da África ocidental e da contribuição jeje na formação das identidades étnicas africanas na Bahia. O autor considera as identidades coletivas das sociedades da África ocidental como multidimensionais, articuladas em diversos níveis (religioso, territorial, lingüístico, político, etc.), porém sempre baseadas em vínculos de parentesco, que reconheciam um passado ancestral e mítico comum. No contexto do tráfico, grupos africanos inicialmente diferenciados, com suas peculiaridades históricas, lingüísticas e de auto-adscrição, teriam sido convenientemente classificados, por missionários e administradores de feitorias européias, sob denominações genéricas (originalmente estranhas a estes  grupos), tais como “nação mina”, “nação nagô” ou “nação jeje”. Nicolau analisa este processo, distinguindo
entre denominações “internas” e “externas”. As primeiras seriam formas de auto-adscrição, enquanto as
segundas seriam categorias impostas“de fora”, por  membros alheios ao grupo, sejam africanos ou escravocratas europeus, sendo que estas denominações externas se prestariam para designar uma luralidade de grupos étnicos heterogêneos. Apoiando-se no pesquisador cubano Jesús Guanche Pérez, o autor chama “denominação metaétnica” a “denominação externa utilizada para assinalar um conjunto de grupos étnicos relativamente vizinhos, com uma comunidade de traços lingüísticos e culturais, com certa estabilidade
territorial e, no contexto do escravismo, embarcados nos mesmos portos” A seguir, especifica os povos jejes a partir de critérios lingüísticos e territoriais, apontando cerca de quatorze grupos principais. Nicolau utiliza a expressão “área vodum” para definir o espaço territorial jeje em termos religiosos e acrescenta que o território jeje abarcava um espaço maior que o do reino do Daomé (situado ao sul da atual República Popular do Benin), incluindo “povos que, embora sujeitos às incursões dos daomeanos na procura de escravos, não pertenciam estritamente aos seus limites políticos”, como os mahis e savalus. Analisando o tráfico português nesta área, aborda de forma exaustiva as constantes guerras entre os reinos de Oyo e Daomé, em torno do controle do infame comércio realizado no litoral que, desde o século XVI até aproximadamente 1860, embarcou milhares de africanos prisioneiros de guerra para o trabalho escravo no Brasil. No tocante à formação da identidade étnica jeje na Bahia, Nicolau analisa a presença destes africanos a partir do Setecentos até o Oitocentos. O foco de sua análise incide sobre as estimativas
populacionais. Além de censos eclesiásticos, geralmente realizados por párocos desinteressados, portanto
inconfiáveis, o autor se debruçou no paciente e estafante trabalho de análise de centenas de inventários, no Arquivo Regional de Cachoeira e no Arquivo Público do Estado da Bahia, documentos em que as enominações étnicas eram mais freqüentes. O que se constata é que o grupo “metaétnico”, proveniente da “área vodum”, se concentrou significativamente no Recôncavo baiano, constituindo o grupo demograficamente majoritário até o início do século XIX, e que, em contato com outros grupos,  principalmente os nagôs, seus vizinhos, instituíram o complexo sistema religioso jeje, na Bahia, denominado Candomblé. O terceiro e o quarto capítulos dedicam-se à análise da institucionalização do Candomblé na Bahia. O terceiro, especificamente, busca as “raízes” deste “processo formativo” nas práticas de cura e adivinhação, que, nos séculos XVII e XVIII, tinham a denominação de calundu. Nicolau se apropria do conceito “complexo fortuna-infortúnio” ou “ventura-desventura”, proposto na década de 1970 por pesquisadores da religião da África centro-ocidental, para pensar as religiões afro-brasileiras. Nesta perspectiva, “a atividade religiosa tem por objetivo não só a prevenção do infortúnio, mas também a maximização da boa sorte” (grifo nosso). O autor considera que os calundus coloniais, com suas práticas de cura e adivinhação, geralmente de caráter individualizado, deram, aos poucos, lugar a formas de organização religiosa cada vez mais complexas e coletivas, envolvendo, entre outros aspectos, intrincados processos de iniciação, hierarquia sacerdotal, calendários de rituais, espaços sagrados estáveis e o culto de múltiplas divindades num mesmo templo. O argumento central de Nicolau, sustentado por variada documentação
histórica e etnográfica, é o de que este “modelo organizacional”, de caráter eclesial ou conventual, que
está na base do Candomblé contemporâneo, foi providenciado, no fim do século XVIII e início do XIX, pelos especialistas religiosos jejes que, nesta área de conhecimento, tinham comprovada tradição. Todavia, o autor sugere que o ritual, seja nas reuniões festivas, realizadas no contexto das irmandades negras, seja no contexto das celebrações religiosas de matriz africana, era um dos espaços privilegiados para expressar e manter a dinâmica de contraste que sustenta as fronteiras étnicas. Deste modo, a diferenciação entre nações
étnicas foi reforçada e perpetuou-se no âmbito do Candomblé, definindo, posteriormente, as “nações de candomblé” enquanto “modalidades de rito”. Tendo localizado e definido os povos da África ocidental responsáveis pela institucionalização do Candomblé baiano, os capítulos seguintes se dedicam à análise etno-histórica de dois terreiros ou comunidades de candomblé de nação jeje mahi – o Zôogodô Bogum Malê Hundô, de Salvador, e o Zôogodô Bogum Malê Seja Hundê, de Cachoeira – que ainda se encontram
em funcionamento. Apesar das dificuldades enfrentadas para definir os meandros da formação destes dois
candomblés, principalmente no que diz respeito à história de vida de seus fundadores, o autor recupera os aspectos mais importantes da sua fundação. Um dos problemas centrais diz respeito à época de formação e consolidação dos dois terreiros e a anterioridade de um em relação ao outro. Outro problema diz respeito à história de vida da figura central na fundação destes terreiros, que foi a africana Ludovina Pessoa e, com relação a Cachoeira, do seu colaborador, o também africano Tixareme. No entanto, a história de vida do arquifono (usando um neologismo de ogan Boboso, um dos seus importantes depoentes) José Maria de Belchior, conhecido como Zé de Brechó, uma figura-chave na formação do Seja Hundê, é satisfatoriamente descrita pelo autor. No capítulo dedicado à análise ritual destes candomblés, Nicolau faz uma belíssima descrição etnográfica, algo raro, mas fruto de paciente trabalho de conquista de confiança e postura ética,
porque, como se sabe, o “jeje é fechado”. O capítulo não se concentra unicamente em descrever o andamento ritual, mas inclui uma análise lingüística dos termos utilizados no idioma ritual. Enfim, podemos dizer, sem estar exagerando, que o livro A formação do Candomblé – história e ritual da nação
jeje na Bahia é um estudo seminal de antropologia do Candomblé, ou seja, trata-se de um trabalho que, sem esgotar o assunto, abre perspectiva para múltiplas outras pesquisas sobre aquela que é uma região vigorosamente importante do ponto de vista afro-religioso: o Recôncavo baiano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário